segunda-feira, 18 de junho de 2012

Além da faixa vermelha


            - Ei, precisamos escolher um nome de três letras para a nossa turma.
            Irremediavelmente, a tradição cpfiana me lembrou os velhos fliperamas onde torrava meus primeiros tostões na infância.Tal como nos saudosos jogos de arcade, os escretes jornalísticos dispunham de somente três letras para eternizar seus recordes na história. Fugindo à tradição das outras turmas que geralmente batizavam seus times a partir de alguma piada interna ou sigla de duplo sentido, sugeri, e confesso que quase jocosamente, por não fazer idéia das dimensões do evento nem do significado que aquele time viria a ter para todos nós; RYU. Os colegas presentes, para minha feliz surpresa, também enxergavam o jovem mestre Hadou como um dos símbolos heróicos supremos da nossa geração e acataram aquela brincadeira que foi crescendo.
            Enquanto criança que locou Street Fighter Victory - o Filme perto de quinze vezes, pré-adolescente com muitas bolhas nos dedos pelas horas diárias de Street Fighter Alpha 2 no Sega Saturno e calouro que abandonou o salão de festas do próprio prédio na abertura da CPF para subir e dar uma lição do mesmo jogo a um veterano abusado (certo, ainda sou refém dos velhos hábitos até hoje), não precisei de muito para me empolgar com o RYU.
Poucas horas antes de sair de casa para pisar pela primeira vez na Arena Paulo Francis, resolvi catar a faixa vermelha de alguma antiga embalagem de presente esquecida no armário para amarrar na cabeça em homenagem à nossa entidade guia. Cheguei à Academia do Gol da Torre ao lado do colega de copo e de cruz Daniel Ferrugem, quando ninguém da nossa classe se encontrava presente ainda e haviam somente uns poucos gatos pingados veteranos aquecendo no gramado.
            Um deles, usando boné – era o lendário arqueiro Nilton AJ –, olhou para o meu adereço com um sorriso de deboche:
            - Cazuza fazendo escola, é?
            Respondi com um sorriso amarelo como a camisa que ele vestia. Ainda não conhecia o craque dos campos, das locuções e dos salões de festa Eduardo Cazuza; acreditei se tratar de uma comparação pouco inspirada ao cantor oitentista para me provocar e ignorei, silenciosamente, como todo bom calouro paulofranciano.
            - Não, é a faixa do Ryu, o Ryu usa uma faixa vermelha na cabeça! – intercedeu Ferrugem, para total indiferença dos veteranos, mas já dando indícios da verve que o faria reconhecido como capitão da equipe tempos depois. “Se impõe, caralho, senão não vão respeitar a gente”, acrescentou para mim em voz baixa. E estava certo. Tínhamos pela frente um batismo de fogo ante os formandos do MAA, time de Macalé e de um Wagner Rainha determinado a consagrar sua majestade cumprindo a meta dos cinqüenta tentos na histórica campanha W50 (que viria a terminar como W64, a Ditadura do Gol, como vocês bem devem ter lido nos livros).
            Mas não foi precisamente para falar da sova de 3x0 que levamos dos movidos a álcool que fiz tamanha viagem no tempo (a quem interessar os detalhes do embate, vale conferir a polêmica resenha do Ferrugem calouro http://copapaulofrancis.blogspot.com.br/2008/04/ryu-0-x-3-maa-digno-tropeo.html). Recordo tais memórias porque neste jogo outra frase, desta vez vinda dos microfones da narração, tornou a me tirar um tanto do sério.
            - Calouro Rambo com a bola!
            Não tinha maturidade suficiente para compreender a honra que era uma alcunha dada pelo muso narrador e botador-de-apelidos pai cpfiano Henrique, nem o quanto Rambo era coerente com a minha postura viril e seria útil na hora de intimidar os adversários, e só conseguia ficar puto com o fato de ninguém parecer captar uma referência tão óbvia ao mais célebre dos street fighters. Primeiro, Cazuza. Depois, Rambo? Embora empregasse todos os meus esforços para não transparecer insegurança naquela árdua iniciação, cheguei a questionar se não parecia um paspalho aos olhos dos demais com aquela fita de presente na cabeça.
            Quando veio o sábado seguinte, por puro orgulho, tesourei uma velha camisa vermelha e tornei a vestir a faixa. Na terceira rodada, todos do RYU resolveram usá-la, gesto que encorajei na esperança de vê-la se tornar uma marca do escrete ou mesmo incorporada no uniforme padrão. O ato, por sua vez, foi ironizado e caçoado pelos veteranos nas resenhas do blog e, aos poucos, meus companheiros se cansaram do adereço, salvo raras exceções aqui e acolá. Resignado, tomei a decisão de seguir como seu solitário portador nas pelejas jornal-futebolísticas por vir e passei a assinar oficialmente como Rambo, como já era referenciado nas coberturas e narrações há algum tempo.
            Solitário fui, pelos cinco anos que se seguiriam, até o sábado da minha última partida pela Copa Paulo Francis. Na comovente homenagem ao escrete cinzento que saía da vida para entrar para a história, vi guerreiros e mitos paulofrancianos dos mais diversos tempos e cores indo à arena com a faixa rubra que, quando calouro hesitante em seu jogo de estreia, temi parecer bobo vestindo.
            Nossos amigos e arquirrivais do RUN; nosso mais pentelho simpatizante e cinzento enrustido Diogo Madruga (tu é grey que eu sei); agregados que nunca vira na vida; os adversários rosados do FDM com os quais disputaríamos o troféu de campeão; o maior craque desses dez anos de CPF, Dudu Maia; toda a turma do RYU, dos fiéis aos mais improváveis que compareceram para testemunhar o confronto final. E eu crendo, na inocência de alguns meses atrás, que emocionante havia sido ver Paul McCartney levantando a bandeira de Pernambuco.
Foi deslumbrado diante desta visão que Rambo teve a epifânica certeza de seu destino cumprido e soube que descansaria em paz ao soar do apito derradeiro. Naquela tarde todos eram Ryu, o Ryu era todos e a faixa vermelha transcendia enfim o calouro mal-interpretado para tornar-se síntese de uma era.
            Feliz é se aposentar percebendo que cada gota de sangue, suor e lágrima foi doada para defender um time que se fez tão querido. Se nos videogames o Ryu cinzento é o sinistro ‘Dark Ryu’, sua versão maligna e secreta habilitada somente através de cheatcodes (na verdade a malícia para ele aparecer no Street Fighter Alpha 2 é bem fácil: na tela de seleção dos personagens segura Start no Ryu, depois frente, cima, baixo, trás, segura o Start  de novo e escolhe o Ryu com qualquer um dos botões), nos gramados paulofrancianos as bad vibes sombrias voaram longe demais. Da paráfrase de Kafka, fez-se o lema do escrete: tudo que não é brodagem me aborrece.  
            Difícil é expressar o sentimento de jogar a última partida na Paulo Francis, mas acredito que deva se assemelhar ao de John Lennon após o fim dos Beatles. “I was the Walrus, but now I’m John”. Eu era Rambo, agora sou Matheus. Ainda em campo, me despedi da faixa vermelha abobalhadamente realizado por ter a confirmação plena de que ela jamais fora feita para ser usada por um homem só. Que seja eterno patrimônio imaterial da Copa Paulo Francis como insígnia de bravura, fraternidade e brodagem; esta acima de tudo, para as gerações futuras.

Abraços por cinco anos agradecidos e desde já saudosos,

Matheus Rambo



Comentários
15 Comentários

15 comentários:

  1. Meu querido amigo, ninguém mais merecedor de vestir a faixa vermelha e contar sua saga - não mudaria uma letra sequer do relato, assim foi e assim restará contado. Sua faixa descansa em pedestal privilegiado aqui em casa, para nunca mais sair!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. todos sabem da verdade, Matheus Hendrix... Testo fodástico, meu bróther. E pra mim, espectador-leigo-amador, que não entendo de futebol por opção. Porque eu prefiro acreditar que gol não é tão importante quanto raça. E a raça era do RYU naquele dia. Deu pra ver fagulhas azuis a cada chute naquele gol rosado. Parabéns ao RYU, que deus abençoe suas cinzas.

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  4. (esse comentário apagado de André, fui eu sem querer)

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  5. meio gonzo esse texto, hein? :) lindo, math! tô aqui cheia de admiração e orgulho do time, do amigo, da história, da copa e da parceria de tcc.

    beijo!

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  6. Tira a faixa do pedestal de Daniel, Matheus. Olha a frescura!

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  7. eu acho que ainda não caiu a ficha que o RYU não vai disputar novamente o título em 2013. :/

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  8. Que lindo, Matheus, fiquei emocionada. Esse texto, assim como o RYU, assim como a faixa vermelha, vai ficar eternizado.

    Saudades, amigos (e arquirrivais).

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  9. Gente, que lindo! Me arrepiei horrores.

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